13/04/2013

Quando a vida nos apanha lentos, distraídos e mancos

"Dono, o relógio parou. São duas?
Vem a mancar da perna de plástico, com os mesmos olhos grandes e a medalha ao peito. Ao velho, comove a simpleza do rapaz.
Deste-lhe corda?
O rapaz estende o pulso.
Como tudo na vida, é preciso dar corda.
Ouve-se o rodar da rosca dourada na lateral do objecto luzente. O rapaz está atento, poderíamos dizer admirado ao ver os ponteiros a recomeçarem a sua função.
Todos os dias?
Para te lembrares que o tempo de vida acaba. E deve ser aproveitado.
Um cão só dura dez anos.
Pode durar vinte, até. Quem manda não é o bicho.
É deus.
O delfim tem-te ensinado bem.
A José faria mais sentido falar do mando das circunstâncias.
O meu pai é que me ensinou.
E também te disse que deus é um mentiroso?
O rapaz anda pela sala num movimento balanceado.
O dono assim vai par o inferno.
Estimo encontrar por lá muita gente.
Ri-se, mas o rapaz não.
Deus sabe quem é bom e quem é mau.
O velho levanta-se, desamparado pela idade.
Até saberá, mas anda com pouco rigor a fazer as suas contas.
O rapaz segue-o.
Deve andar com intenções políticas.
Ri-se. O rapaz encolhe os ombros.
Vamos. Temos coisas para fazer.
Posso pegar na espingarda?
O velho respira.
Fala-me da baleia, primeiro."

Marlene Ferraz, A vida inútil de José Homem, Gradiva, 2013


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