01/01/2013

Gonçalo M. Tavares: Uma síntese disto tudo; a salvação

"É porque existe o desejo, o olfacto, e o medo,
e os vivos apaixonam-se por outros vivos,
e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos;
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta,
porque o coração tem em certos dias um orçamento incomportável.
E não basta então a mulher que amamos,
nem os filhos
- os que nos vão sobreviver no tempo -
e é preciso sair, e não basta sair para a rua e correr,
é preciso sair dos ossos,
fugir ao obrigatório, à casa,
encontrar dentro dos bolsos o bocado de uma carta, um mapa,
fragmento que possa reconstituir o caminho para a casa da infância
onde Deus era chocolate e o resolvíamos, assim, de uma vez, porque o comíamos.
Porque mais tarde crescemos e ganhámos dinheiro, família, e alguns outros assuntos,
mas perdemos qualquer coisa de que é impossível falar, de que não sabemos falar.
E é por isso tudo,
e por quase tudo o que faltou dizer,
é por isso que é bom, por vezes,
suspender a noite e o coração,
e obrigar o cérebro à paragem surpreendente.
É por isso que é bom, por vezes,
ocuparmos o corpo no acto de sentar,
e pedir, então, à arte, à literatura, ao teatro,
que nos salve,
por enquanto,
antes de morrermos."

Gonçalo M. Tavares, A colher de Samuel Beckett e outros textos, Porto, Campo das Letras, 2002

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